Já dizia Clarice que as pessoas, por não andarem distraídas, queriam ser o que já eram, queriam ter o que já tinham, queriam matar a sede da boca seca de admiração. E foi numa destas distrações que Alice o viu pela primeira vez. Almoçava tranqüila em meio ao verde das árvores, no restaurante em que o assoalho antigo de madeira fazia um barulho lindo quando encostava os saltos dos sapatos. Por muitas vezes Alice imaginara que havia apenas ela andando por cima daquelas madeiras barulhentas. E foi em um destes devaneios que Alice encontrou os olhos negros e sérios pela primeira vez: eles a fitavam com imensa curiosidade, surpresa e atenção, como uma criança que desperta para um acontecimento novo do mundo. E Alice sentiu uma brasa no coração, como a mesma criança que desperta para um acontecimento novo do mundo.
Passado o episódio (e a sobremesa!), Alice voltou para o trabalho, sem questionar ou pensar demais no acontecido. Ocorreu então, para sua surpresa, que antes de dormir ela relembrou o encontro de olhares, e reviveu a brasa quente no coração.
Semanas depois, numa tarde preguiçosa de outono, Alice resolve dar um tempo no trabalho, e descer ao Café para tomar alguma coisa quente, destas que não aquecem a alma, mas driblam a agonia do corpo. E então ela o revê, sentando em uma mesa com algumas pessoas, totalmente alheio ao assunto, num olhar longínquo prestando atenção a qualquer bobagem que passava na TV naquele instante. Ele não a viu, estava com o pensamento distante demais para isso, mas Alice o reconheceu, e sentiu aquele quentinho novamente lá dentro, como se algo a dissesse que realmente as coisas não acontecem por acaso.
Alice tinha muitas dúvidas a respeito do acaso: não acreditou nele por diversas vezes, e em outras, o crucificou na maré da realidade, das ações e do cotidiano. Mas como dizia Pessoa: “Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!”. E Alice começava a se sentir mais do avesso do que nunca...